Por força de convenção, um símbolo representa algo abstrato, e um monumento que é uma palavra de origem grega significa “lembrar”, reviver o passado. A estátua, vista de baixo para cima, sugere a soberania daquilo a que vem representar. Um símbolo da ação do humano contra o próprio humano, a representação da conquista e da hegemonia entre povos. O atestado cruel de um passado que volta a se repetir continuamente. Um passado que não passou. A dura representação do presente.
O colonizador é exaltado em praça publica, para que a gente não se esqueça do nosso lugar. O bandeirante é venerado com sua arma em punho, para que a gente se lembre das consequências da nossa insubordinação. Tanto se defende esses “documentos históricos” mas isso apenas oculta o desejo de perpetuar uma forma de vida, porque antes de mais nada uma estátua é uma celebração. E o que continuamos a celebrar?
O nosso país é repleto de monumentos que simbolizam a fixação do poder – a experiência da dominação. Somos “disciplinados” de forma tal, que somos atravessados por um apego ao nosso passado escravagista. Enquanto alguns (geralmente estes em quem essas feridas abrem), queimam símbolos, estátuas e vidraças, outros defendem o valor “histórico” desses monumentos, sem se dar conta que na verdade estão a celebrar. Por que celebra-se essa “conquista” no cotidiano, no espaço público em plena luz do dia, sem o menor pudor? Defender da destruição obras que partiram da destruição de povos e histórias nada mais é do que defender essa lógica.
O monumento conservado e restaurado é a ideia conservada e restaurada que nos diz a todo momento “a forma como as coisas foram e continuarão sendo”. A arma de Manuel de Borba Gato continua apontada para aqueles que tiveram suas terras expropriadas, suas famílias exterminadas, seu povo escravizado. A arma esta apontada para mulheres, indígenas, negros, LGBTQIA+ e tantos outros… A arma está apontada contra nós!
E quando dizemos chega aos joelhos dos policiais sob nossos pescoços e destruímos esses símbolos somos chamados de “vândalos”. Esse é o adjetivo que recebemos quando a disciplina não surte mais o efeito desejado. Quando perdemos a utilidade porque não nos sujeitamos mais a tanta exploração.
Existe o argumento que hoje as estatuas não tem mais o mesmo significado, afinal as coisas mudaram. É verdade, mudaram tanto que o poder coercitivo agora está na nossa própria dialética. A colonização se consolidou na linguagem. Por fim, o que seria a disciplina senão uma forma de uns exercerem poder sobre outros? Como uma espécie de metodologia política com a intenção de domesticar corpos para que sejam ao mesmo tempo úteis e obedientes, a disciplina surge como artifício que permite capitalizar o tempo. O sujeito disciplinado é hábil para impor uma lei a própria vontade. Autogovernar-se. Seguir a risca a lógica da propriedade aplicada contra si – em um exercício constante de uma liberdade fictícia, no qual sendo seu próprio Senhor será também o seu próprio algoz em um jogo masoquista onde suas mãos chibatam as suas próprias costas.
Eis o fruto do pensamento colonizatório e o significado atual das nossas estátuas – cada um sendo seu próprio bandeirante a escravizar a sí.
Sandra Martins
Amei os textos .. Parabéns!!
Aguardando mais .. beijos